Um dos temas que mais me interessam em Direito Penal, e que considero dos mais relevantes, diz respeito à individualização da pena.
A matéria tem assento constitucional. O inciso LXVI do art. 5º da CF determina que a “
a lei regulará a individualização da pena“. Mas, afinal, o que é individualizar a pena? Nada mais é do que estabelecer qualitativa (qual pena) e quantivamente (quanto tempo) a sanção que aquele que transgride a lei merece. Trata-se, em verdade, de corolário da velha regra de que Justiça consiste em dar a cada um exatamente o que é seu. Isso se aplica também aos atos ilícitos: quem ofende o que determina a lei deve sofrer sanção adequada, de acordo com a gravidade da ofensa e suas circunstâncias pessoais.
No plano infraconstitucional, a individualização do tema é tratado nos arts. 59 e 68 do CP. O primeiro, em sua parte final, estabelece a finalidade da individualização: fixar a pena
“conforme seja necessário o suficiente para reprovação e prevenção do crime”.
O segundo estabelece como se dará essa individualização. Eis o que diz o artigo:
Art. 68. A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do artigo 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.
Segundo esse dispositivo, adota-se a regra trifásica de fixação da pena, defendida pelo célebre Nelson Hungria. As três fases de fixação da pena, em síntese, são as seguintes:
- 1ª Fase: analisam-se as circunstâncias do art. 59 do CP, conhecidas por circunstâncias judiciais. É sobre essa fase que pretendo falar neste post. Analisando cada uma delas, o juiz fixa a denominada pena base, que pode variar entre o mínimo e o máximo estabelecido em lei.
- 2ª Fase: a partir da pena-base (fixada na primeira fase), o juiz verifica se estão presentes circunstâncias agravantes ou atenuantes. Como o nome diz, são circunstâncias previstas em lei que atenuam ou agravam o crime e se caracterizam porque a lei apenas se limita a lhes conferir essa condição, mas não estabelece qual o percentual de aumento ou diminuição. No CP elas se situam na Parte Geral; as agravantes estão no art. 61 e as atenuantes nos arts. 65 (específicas) e 66 (atenuante genérica ou inominada). Também há leis esparsas que a prevêem. Em geral, a doutrina e a jurisprudência entendem que, como o legislador não especificou quanto cada circunstância implicará no aumento da pena, esse aumento deve ser de um sexto e jamais a pena, nesta fase, pode ficar acima do máximo e aquém do mínimo legal (Súmula 231 do STJ).
- 3ª Fase: na terceira fase, verifica-se a presença de causas de aumento ou diminuição de pena. Que são elas? São circunstâncias que fazem com que a pena seja aumentada ou diminuída. Mas qual a diferença entre elas e as circunstâncias agravantes e atenuantes? São duas diferenças fundamentais: i) nas causas de aumento ou diminuição de pena, o legislador estabelece um valor (fixo ou variável) de aumento ou diminuição (por exemplo, o roubo majorado (art. 157, § 2º, do CP, estabelece um aumento da pena que varia de 1/3 até a metade – sobre o tema já falei num post anterior); ii) enquanto as agravantes e atenuantes ficam na parte geral do CP, as causas de aumento ou diminuição de pena podem ficar tanto na Parte Geral quanto na Parte Especial. Nesta fase, a pena pode ser fixada acima do máximo e abaixo do mínimo estabelecidos em lei.
A matéria é aparentemente simples, mas tem diversos desdobramentos e muita gente confunde. Das três fases, no entanto, a que considero mais importante, e com o tratamento mais simplório dado pela doutrina é a primeira fase.
Nesta fase, o juiz deve analisar as oito circunstâncias estabelecidas no art. 59 do CP (outras leis esparsas – como a nova lei de tóxicos – modificam o panorama de circunstâncias a ser analisado). São elas: culpabilidade, antecedentes, personalidade, conduta social, motivos, circunstâncias e conseqüências do crime e comportamento da vítima. Sopesadas as circunstâncias (de acordo com a prova dos autos), o juiz fixará a pena base entre o mínimo e o máximo estabelecidos no tipo penal. Mas como o juiz fará isso se a lei não estabelece quantias máximas e mínimas para cada circunstância?
São diversos os métodos empregados para fixar a pena base. Já houve quem falasse que o juiz deveria partir do máximo legal e ir baixando a pena conforme apareçam circunstâncias favoráveis ao réu. Já houve quem dissesse que o juiz deve partir do meio da variação (por exemplo, no roubo, a pena vai de quatro a dez anos e a fixação na metade da variação corresponde a sete anos) e analisar as circunstâncias, diminuindo a pena conforme surgissem circunstâncias favoráveis e aumentando conforme surgissem desfavoráveis.
No entanto, domina o entendimento de que nesta fase o juiz deve partir da pena mínima e aumentá-la conforme encontre circunstâncias judiciais desfavoráveis. Mas aumentá-la em quanto?
É aí que reside o objetivo deste post.
Eu adoto um sistema muito interessante (que obviamente não fui eu quem inventei) e que reputo o que mais se adeqüa ao objetivo da lei. Faço assim: pego a variação da pena do crime e divido por oito (número de circunstâncias judiciais). O resultado corresponde ao
quantum de aumento que importará cada circunstância desfavorável. Por exemplo, no furto qualificado, a pena mínima é de dois anos; a máxima de oito. Efetuando a subtração entre máxima e mínima, temos um intervalo de variação de seis anos (ou setenta e dois meses). Portanto, ao fixar a pena base, o juiz pode variá-la em seis anos. Dividindo esse período por oito (número total de circunstâncias judiciais), temos que cada circunstância desfavorável implicará num aumento de nove meses de reclusão.
É uma operação matemática simples, e as virtudes desse sistema são, principalmente, duas:
i) permite estabelecer a pena base de forma objetiva e rigorosamente passível de exame pelo órgão de instância superior;
ii) possibilita cumprir exatamente o objetivo da lei, ou seja, permite ao juiz fixar, fundamentada e objetivamente, a pena entre o máximo e o mínimo legal.
Transcrevo, abaixo, trecho de uma sentença minha em que adoto esse sistema:
a) Circunstâncias judiciais (art. 59 do Código Penal)
a.1) culpabilidade: inexistem causas dirimentes, sendo certo que o grau de reprovabilidade da conduta da acusada é alto e deve ser considerado desfavoravelmente, porque a conduta foi premeditada, tendo havido planejamento com tempo considerável antes da perpetração do crime, sendo certo inclusive que a ré escolheu praticá-lo em cidade diversa de sua residência, de modo que teve tempo necessário para refletir sobre sua conduta e modificar seu animus, mantendo-se, porém, firme em seu propósito criminoso.
a.2) antecedentes: a ré não ostenta antecedentes, apenas processos e inquéritos em andamento, que não são suficientes para caracterizar maus antecedentes, em obediência ao princípio da presunção de inocência.
a.3) conduta social: não há elementos que permitam sua análise.
a.4) personalidade: pode-se afirmar que a ré tem a personalidade voltada para o crime, porque, mesmo possuindo emprego de frentista, voltou-se com afinco para a prática de assaltos a veículos, tendo confessado em juízo que foi condenada por idêntico delito na comarca de Umuarama, existindo nos autos notícia de que a mesma foi identificada como autora de crime semelhante na comarca de Alto Piquiri (fl. 132).
a.5) motivos do crime: são relacionados com o intuito de obter vantagem patrimonial fácil em detrimento de terceiros, o que é próprio do crime de roubo, não podendo ser considerado para majoração da pena base.
a.6) circunstâncias do crime: devem ser consideradas desfavoravelmente, porque o crime foi cometido mediante dissimulação, já que as rés fingiram estar pedindo carona à beira da estrada como forma de atrair a vítima para a armadilha que haviam preparado; demais disso, a vítima foi abandonada amarrada em lugar ermo, ou seja, sua vida foi exposta de forma mais acentuada a perigo.
a.7) conseqüências do crime: devem ser consideradas desfavoravelmente, porque nem o dinheiro e nem as roupas roubadas foram recuperadas.
a.8) comportamento da vítima: não contribuiu para a prática criminosa.
O crime de roubo tem pena mínima de quatro anos e máxima de dez, ou seja, a variação da pena é de seis anos ou setenta e dois meses. Dividindo essa variação por oito (que é o número de circunstâncias judiciais), tem-se que cada circunstância judicial desfavorável deve corresponder a um aumento de nove meses de reclusão.
Considerando que cinco circunstâncias judiciais desfavorecem a acusada (culpabilidade, personalidade, circunstâncias e conseqüências do crime e comportamento da vítima ), fixo a pena base acima do mínimo legal, a saber, em 07 (sete) anos e 09 (nove) meses de reclusão e 228 (duzentos e vinte e oito ) dias multa.
A rigor, a doutrina diz que o juiz, na primeira fase de fixação da pena, não está adstrito a nenhum critério objetivo, e pode fixá-la da forma como bem entender entre o mínimo e o máximo. Há quem atribua um valor fixo a cada circunstância, sem correlação com a pena estabelecida no tipo penal. E há quem atribua valores diferentes de aumento a cada circunstância, conforme sua gravidade e relevância no cenário do delito. Aliás, há corrente jurisprudencial que diz que a fixação da pena base deve se dar de forma qualitativa, e não quantitativa, ou seja, mesma havendo apenas uma circunstância desfavorável, se ela for de muita intensidade, o juiz pode fixar a pena perto do máximo.
Ou seja, não há critério certo ou errado. Mas considero o critério objetivo de variação (que expus acima) como o que melhor permite a fixação da pena de forma clara.
Mas há também quem defenda um critério parecido com o que adoto (de variação fixa da pena para cada circunstância) mas tomando outra base de cálculo, qual seja, a pena mínima. Para essa corrente, deve-se dividir a pena mínima do delito por oito, obtendo-se assim o valor de acréscimo de cada circunstância judicial desfavorável. No furto qualificado (que dei como exemplo acima), dividindo-se dois anos (pena mínima) por oito, teríamos o aumento de três meses de reclusão por circunstância (e não nove, que seria o valor obtido utilizando-se como base de cálculo a variação da pena).
Aliás, o que me levou a escrever o post foi o fato de que recentemente tive uma sentença reformada exatamente por isso. O Tribunal considerou que o critério que eu adotei deveria ser substituído pela utilização da pena mínima do delito como base de cálculo, porque isso seria “
mais benéfico ao réu”.
Obviamente que respeito os argumentos do órgão julgador. Mas achei interessante discutir a matéria aqui no blog.
Nesse passo, entendo que esse modo de agir (adoção da pena mínima como base de cálculo) me parece o mais equivocado de todos. Primeiro, porque despreza as penas máximas cominadas aos delitos. Com efeito, através desse sistema, caso todas as circunstâncias judiciais sejam desfavoráveis, a pena base somente poderá ser igual ao dobro da pena mínima. Despreza-se, assim, a própria determinação do legislador, que estabelece penas mínimas e máximas que devem ser seguidas.
Por exemplo, no furto qualificado, adotando a tese “mais benéfica” ao réu, teríamos que se todas as circunstâncias judiciais fossem desfavoráveis a ele, a pena base não seria fixada no máximo legal (oito anos), mas em quatro anos, que é o dobro da pena mínima. Ou seja, através desse critério, de nada adianta o legislador dizer que a pena máxima desse crime é de oito anos, pois ela nunca será atingida.
Uma regra bastante conhecida de hermenêutica diz que o legislador nunca emprega palavras desnecessárias. Em direito penal, em se tratando de penas, isso ganha mais relevo porque, se, de fato, o legislador estabelece uma pena máxima a um delito, essa pena deve ser atingida caso o transgressor tenha contra si todas as circunstâncias judiciais desfavoráveis.
Exemplo clássico é o do peculato. A pena varia de 2 a 12 anos. E por que há tamanha variação? Porque o peculato pode se revestir de diversas circunstâncias que justificam a fixação da pena em patamares menores ou maiores. Se o objeto desviado não era de grande valor, foi um momento de bobeira do servidor, que não ostentava antecedentes e praticou o delito premido de alguma necessidade razoável (doença em família, por exemplo), é óbvio que a pena não pode superar muito os 2 anos mínimos. Mas e se foi um servidor com vários antecedentes, que planejou um sofisticado sistema de desviar dinheiro e nessa condição se apropriou de milhões de reais, e fez isso por motivos escusos (por exemplo, arrecadar dinheiro para organização paramilitar). É óbvio que nesse caso a pena base deve se aproximar do máximo, ou seja, dos doze anos.
No entanto, se adotássemos a “tese mais benéfica”, empregando a pena mínima como base de cálculo, ainda que todas as circunstâncias judiciais fossem contrárias ao réu, a pena base máxima obtida seria de quatro anos de reclusão. Seria justo isso? Evidentemente que não. Fica evidente, nesse exemplo, que o que chamo de “tese mais benéfica” dissocia-se dos objetivos da lei.
Por outro lado, essa idéia de que a adoção da pena mínima como mais benéfica ao réu é um sofisma. Nos crimes em que a pena máxima supere o dobro da pena mínima, o raciocínio é correto. Mas naqueles em que isso não ocorre, a situação é outra. Vejamos o caso do art. 89 da Lei 8.666/93. A pena mínima é de três anos e a máxima de cinco. Se utilizarmos o sistema que eu defendo (que pega por base o total da variação da pena), teremos um aumento de três meses de reclusão por circunstância desfavorável. Se utilizarmos como base de cálculo a pena mínima, o aumento por circunstância será de quatro meses e meio. Ou seja, aqui, o critério não é mais benéfico ao réu e se todas as circunstâncias judiciais fossem desfavoráveis, a pena teria de ser fixada em patamar superior ao máximo legal, o que não pode ocorrer.
Além disso, não consigo entender essa idéia recorrente na cabeça de alguns de que tudo em direito penal deve ser mais favorável ao réu. Será que é tudo mesmo? Se fosse, não precisaríamos nem fixar pena, que se dê a pena mínima então. Critério mais benéfico ao réu somente deve prevalecer quando houver possibilidade de adoção de mais de uma forma de agir, estando todas de acordo com a lei. E a adoção do sistema de exasperação tomando por base a pena mínima não me parece estar conforme a intenção do legislador, pelos motivos que expus.
Por tudo isso, o critério que atende de forma melhor, mais clara e objetiva o desiderato da norma penal é o que, na análise das circunstâncias judiciais, parte da pena mínima e a aumenta a cada circunstância judicial desfavorável, acrescendo a pena o equivalente a um oitavo do intervalo de variação de pena estabelecido pelo legislador. Através dele, efetivamente o juiz fixará a pena base entre mínimo (todas as circunstâncias favoráveis) e máximo (todas desfavoráveis), de forma transparente e permitindo questionamento e recálculo adequados na via recursal.
Essa conclusão é evidente. Mas nem todo mundo vê. Bem que o legislador poderia, então, criar um parágrafo único ao art. 59 do CP, com a seguinte redação: “na fixação da pena base o juiz partirá da pena mínima e, a cada circunstância judicial desfavorável, a aumentará no equivalente a um oitavo do intervalo de variação estabelecido no preceito secundário da norma violada”.