segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Afinal, que critério adotar na primeira fase da individualização da pena?

Um dos temas que mais me interessam em Direito Penal, e que considero dos mais relevantes, diz respeito à individualização da pena.
A matéria tem assento constitucional. O inciso LXVI do art. 5º da CF determina que a “a lei regulará a individualização da pena“. Mas, afinal, o que é individualizar a pena? Nada mais é do que estabelecer qualitativa (qual pena) e quantivamente (quanto tempo) a sanção que aquele que transgride a lei merece. Trata-se, em verdade, de corolário da velha regra de que Justiça consiste em  dar a cada um exatamente o que é seu. Isso se aplica também aos atos ilícitos: quem ofende o que determina a lei deve sofrer sanção adequada, de acordo com a gravidade da ofensa e suas circunstâncias pessoais.
No plano infraconstitucional, a individualização do tema é tratado nos arts. 59 e 68 do CP. O primeiro, em sua parte final, estabelece a finalidade da individualização: fixar a pena “conforme seja necessário o suficiente para reprovação e prevenção do crime”.
O segundo estabelece como se dará essa individualização. Eis o que diz o artigo:
Art. 68. A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do artigo 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.
Segundo esse dispositivo, adota-se a regra trifásica de fixação da pena, defendida pelo célebre Nelson Hungria. As três fases de fixação da pena, em síntese, são as seguintes:
  • 1ª Fase: analisam-se as circunstâncias do art. 59 do CP, conhecidas por circunstâncias judiciais. É sobre essa fase que pretendo falar neste post. Analisando cada uma delas, o juiz fixa a denominada pena base, que pode variar entre o mínimo e o máximo estabelecido em lei.
  • 2ª Fase: a partir da pena-base (fixada na primeira fase), o juiz verifica se estão presentes circunstâncias agravantes ou atenuantes. Como o nome diz, são circunstâncias previstas em lei que atenuam ou agravam o crime e se caracterizam porque a lei apenas se limita a lhes conferir essa condição, mas não estabelece qual o percentual de aumento ou diminuição. No CP elas se situam na Parte Geral; as agravantes estão no art. 61 e as atenuantes nos arts. 65 (específicas) e 66 (atenuante genérica ou inominada). Também há leis esparsas que a prevêem. Em geral, a doutrina e a jurisprudência entendem que, como o legislador não especificou quanto cada circunstância implicará no aumento da pena, esse aumento deve ser de um sexto e jamais a pena, nesta fase, pode ficar acima do máximo e aquém do mínimo legal (Súmula 231 do STJ).
  • 3ª Fase: na terceira fase, verifica-se a presença de causas de aumento ou diminuição de pena. Que são elas? São circunstâncias que fazem com que a pena seja aumentada ou diminuída. Mas qual a diferença entre elas e as circunstâncias agravantes e atenuantes? São duas diferenças fundamentais: i) nas causas de aumento ou diminuição de pena, o legislador estabelece um valor (fixo ou variável) de aumento ou diminuição (por exemplo, o roubo majorado (art. 157, § 2º, do CP, estabelece um aumento da pena que varia de 1/3 até a metade – sobre o tema já falei num post anterior); ii) enquanto as agravantes e atenuantes ficam na parte geral do CP, as causas de aumento ou diminuição de pena podem ficar tanto na Parte Geral quanto na Parte Especial. Nesta fase, a pena pode ser fixada acima do máximo e abaixo do mínimo estabelecidos em lei.
A matéria é aparentemente simples, mas tem diversos desdobramentos e muita gente confunde. Das três fases, no entanto, a que considero mais importante, e com o tratamento mais simplório dado pela doutrina é a primeira fase.
Nesta fase, o juiz deve analisar as oito circunstâncias estabelecidas no art. 59 do CP (outras leis esparsas – como a nova lei de tóxicos – modificam o panorama de circunstâncias a ser analisado). São elas: culpabilidade, antecedentes, personalidade, conduta social, motivos, circunstâncias e conseqüências do crime e comportamento da vítima. Sopesadas as circunstâncias (de acordo com a prova dos autos), o juiz fixará a pena base entre o mínimo e o máximo estabelecidos no tipo penal. Mas como o juiz fará isso se a lei não estabelece quantias máximas e mínimas para cada circunstância?
São diversos os métodos empregados para fixar a pena base. Já houve quem falasse que o juiz deveria partir do máximo legal e ir baixando a pena conforme apareçam circunstâncias favoráveis ao réu. Já houve quem dissesse que o juiz deve partir do meio da variação (por exemplo, no roubo, a pena vai de quatro a dez anos e a fixação na metade da variação corresponde a sete anos) e analisar as circunstâncias, diminuindo a pena conforme surgissem circunstâncias favoráveis e aumentando conforme surgissem desfavoráveis.
No entanto, domina o entendimento de que nesta fase o juiz deve partir da pena mínima e aumentá-la conforme encontre circunstâncias judiciais desfavoráveis. Mas aumentá-la em quanto?
É aí que reside o objetivo deste post.
Eu adoto um sistema muito interessante (que obviamente não fui eu quem inventei) e que reputo o que mais se adeqüa ao objetivo da lei. Faço assim: pego a variação da pena do crime e divido por oito (número de circunstâncias judiciais). O resultado corresponde ao quantum de aumento que importará cada circunstância desfavorável. Por exemplo, no furto qualificado, a pena mínima é de dois anos; a máxima de oito. Efetuando a subtração entre máxima e mínima, temos um intervalo de variação de seis anos (ou setenta e dois meses). Portanto, ao fixar a pena base, o juiz pode variá-la em seis anos. Dividindo esse período por oito (número total de circunstâncias judiciais), temos que cada circunstância desfavorável implicará num aumento de nove meses de reclusão.
É uma operação matemática simples, e as virtudes desse sistema são, principalmente, duas: i) permite estabelecer a pena base de forma objetiva e rigorosamente passível de exame pelo órgão de instância superior; ii) possibilita cumprir exatamente o objetivo da lei, ou seja, permite ao juiz fixar, fundamentada e objetivamente, a pena entre o máximo e o mínimo legal.
Transcrevo, abaixo, trecho de uma sentença minha em que adoto esse sistema:
a)    Circunstâncias judiciais (art. 59 do Código Penal)
a.1) culpabilidade: inexistem causas dirimentes, sendo certo que o grau de reprovabilidade da conduta da acusada é alto e deve ser considerado desfavoravelmente, porque a conduta foi premeditada, tendo havido planejamento com tempo considerável antes da perpetração do crime, sendo certo inclusive que a ré escolheu praticá-lo em cidade diversa de sua residência, de modo que teve tempo necessário para refletir sobre sua conduta e modificar seu animus, mantendo-se, porém, firme em seu propósito criminoso.
a.2) antecedentes: a ré não ostenta antecedentes, apenas processos e inquéritos em andamento, que não são suficientes para caracterizar maus antecedentes, em obediência ao princípio da presunção de inocência.
a.3) conduta social: não há elementos que permitam sua análise.
a.4) personalidade: pode-se afirmar que a ré  tem a personalidade voltada para o crime, porque, mesmo possuindo emprego de frentista, voltou-se com afinco para a prática de assaltos a veículos, tendo confessado em juízo que foi condenada por idêntico delito na comarca de Umuarama, existindo nos autos notícia de que a mesma foi identificada como autora de crime semelhante na comarca de Alto Piquiri (fl. 132).
a.5) motivos do crime: são relacionados com o intuito de obter vantagem patrimonial fácil em detrimento de terceiros, o que é próprio do crime de roubo, não podendo ser considerado para majoração da pena base.
a.6) circunstâncias do crime: devem ser consideradas desfavoravelmente, porque o crime foi cometido mediante dissimulação, já que as rés fingiram estar pedindo carona à beira da estrada como forma de atrair a vítima para a armadilha que haviam preparado; demais disso, a vítima foi abandonada amarrada em lugar ermo, ou seja, sua vida foi exposta de forma mais acentuada a perigo.
a.7) conseqüências do crime: devem ser consideradas desfavoravelmente, porque nem o dinheiro e nem as roupas roubadas foram recuperadas.
a.8) comportamento da vítima: não contribuiu para a prática criminosa.
O crime de roubo tem pena mínima de quatro anos e máxima de dez, ou seja, a variação da pena é de seis anos ou setenta e dois meses. Dividindo essa variação por oito (que é o número de circunstâncias judiciais), tem-se que cada circunstância judicial desfavorável deve corresponder a um aumento de nove meses de reclusão.
Considerando que cinco circunstâncias judiciais desfavorecem a acusada (culpabilidade, personalidade, circunstâncias e conseqüências do crime e comportamento da vítima ), fixo a pena base acima do mínimo legal, a saber, em 07 (sete) anos e 09 (nove) meses de reclusão e 228 (duzentos e vinte e oito ) dias multa.
A rigor, a doutrina diz que o juiz, na primeira fase de fixação da pena, não está adstrito a nenhum critério objetivo, e pode fixá-la da forma como bem entender entre o mínimo e o máximo. Há quem atribua um valor fixo a cada circunstância, sem correlação com a pena estabelecida no tipo penal. E há quem atribua valores diferentes de aumento a cada circunstância, conforme sua gravidade e relevância no cenário do delito. Aliás, há corrente jurisprudencial que diz que a fixação da pena base deve se dar de forma qualitativa, e não quantitativa, ou seja, mesma havendo apenas uma circunstância desfavorável, se ela for de muita intensidade, o juiz pode fixar a pena perto do máximo.
Ou seja, não há critério certo ou errado. Mas considero o critério objetivo de variação (que expus acima) como o que melhor permite a fixação da pena de forma clara.
Mas há também quem defenda um critério parecido com o que adoto (de variação fixa da pena para cada circunstância) mas tomando outra base de cálculo, qual seja, a pena mínima. Para essa corrente, deve-se dividir a pena mínima do delito por oito, obtendo-se assim o valor de acréscimo de cada circunstância judicial desfavorável. No furto qualificado (que dei como exemplo acima), dividindo-se dois anos (pena mínima) por oito, teríamos o aumento de três meses de reclusão por circunstância (e não nove, que seria o valor obtido utilizando-se como base de cálculo a variação da pena).
Aliás, o que me levou a escrever o post foi o fato de que recentemente tive uma sentença reformada exatamente por isso. O Tribunal considerou que o critério que eu adotei deveria ser substituído pela utilização da pena mínima do delito como base de cálculo, porque isso seria “mais benéfico ao réu”.
Obviamente que respeito os argumentos do órgão julgador. Mas achei interessante discutir a matéria aqui no blog.
Nesse passo, entendo que esse modo de agir (adoção da pena mínima como base de cálculo) me parece o mais equivocado de todos. Primeiro, porque despreza as penas máximas cominadas aos delitos. Com efeito, através desse sistema, caso todas as circunstâncias judiciais sejam desfavoráveis, a pena base somente poderá ser igual ao dobro da pena mínima. Despreza-se, assim, a própria determinação do legislador, que estabelece penas mínimas e máximas que devem ser seguidas.
Por exemplo, no furto qualificado, adotando a tese “mais benéfica” ao réu, teríamos que se todas as circunstâncias judiciais fossem desfavoráveis a ele, a pena base não seria fixada no máximo legal (oito anos), mas em quatro anos, que é o dobro da pena mínima. Ou seja, através desse critério, de nada adianta o legislador dizer que a pena máxima desse crime é de oito anos, pois ela nunca será atingida.
Uma regra bastante conhecida de hermenêutica diz que o legislador nunca emprega palavras desnecessárias. Em direito penal, em se tratando de penas, isso ganha mais relevo porque, se, de fato, o legislador estabelece uma pena máxima a um delito, essa pena deve ser atingida caso o transgressor tenha contra si todas as circunstâncias judiciais desfavoráveis.
Exemplo clássico é o do peculato. A pena varia de 2 a 12 anos. E por que há tamanha variação? Porque o peculato pode se revestir de diversas circunstâncias que justificam a fixação da pena em patamares menores ou maiores. Se o objeto desviado não era de grande valor, foi um momento de bobeira do servidor, que não ostentava antecedentes e praticou o delito premido de alguma necessidade razoável (doença em família, por exemplo), é óbvio que a pena não pode superar muito os 2 anos mínimos. Mas e se foi um servidor com vários antecedentes, que planejou um sofisticado sistema de desviar dinheiro e nessa condição se apropriou de milhões de reais, e fez isso por motivos escusos (por exemplo, arrecadar dinheiro para organização paramilitar). É óbvio que nesse caso a pena base deve se aproximar do máximo, ou seja, dos doze anos.
No entanto, se adotássemos a “tese mais benéfica”, empregando a pena mínima como base de cálculo, ainda que todas as circunstâncias judiciais fossem contrárias ao réu, a pena base máxima obtida seria de quatro anos de reclusão. Seria justo isso? Evidentemente que não. Fica evidente, nesse exemplo, que o que chamo de “tese mais benéfica” dissocia-se dos objetivos da lei.
Por outro lado, essa idéia de que a adoção da pena mínima como mais benéfica ao réu é um sofisma. Nos crimes em que a pena máxima supere o dobro da pena mínima, o raciocínio é correto. Mas naqueles em que isso não ocorre, a situação é outra. Vejamos o caso do art. 89 da Lei 8.666/93. A pena mínima é de três anos e a máxima de cinco. Se utilizarmos o sistema que eu defendo (que pega por base o total da variação da pena), teremos um aumento de três meses de reclusão por circunstância desfavorável. Se utilizarmos como base de cálculo a pena mínima, o aumento por circunstância será de quatro meses e meio. Ou seja, aqui, o critério não é mais benéfico ao réu e se todas as circunstâncias judiciais fossem desfavoráveis, a pena teria de ser fixada em patamar superior ao máximo legal, o que não pode ocorrer.
Além disso, não consigo entender essa idéia recorrente na cabeça de alguns de que tudo em direito penal deve ser mais favorável ao réu. Será que é tudo mesmo? Se fosse, não precisaríamos nem fixar pena, que se dê a pena mínima então. Critério mais benéfico ao réu somente deve prevalecer quando houver possibilidade de adoção de mais de uma forma de agir, estando todas de acordo com a lei. E a adoção do sistema de exasperação tomando por base a pena mínima não me parece estar conforme a intenção do legislador, pelos motivos que expus.
Por tudo isso, o critério que atende de forma melhor, mais clara e objetiva o desiderato da norma penal é o que, na análise das circunstâncias judiciais, parte da pena mínima e a aumenta a cada circunstância judicial desfavorável, acrescendo a pena o equivalente a um oitavo do intervalo de variação de pena estabelecido pelo legislador. Através dele, efetivamente o juiz fixará a pena base entre mínimo (todas as circunstâncias favoráveis) e máximo (todas desfavoráveis), de forma transparente e permitindo questionamento e recálculo adequados na via recursal.
Essa conclusão é evidente. Mas nem todo mundo vê. Bem que o legislador poderia, então, criar um parágrafo único ao art. 59 do CP, com a seguinte redação: “na fixação da pena base o juiz partirá da pena mínima e, a cada circunstância judicial desfavorável, a aumentará no equivalente a um oitavo do intervalo de variação estabelecido no preceito secundário da norma violada”.

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